A relação das pessoas e empresas com a tecnologia irá mudar com a crise causada pela pandemia de coronavirus? O professor e coordenador do PROINFO-Fia Edson Germano escreveu este texto sobre as perspectivas do setor e transformação digital.
Para ele, as pessoas irão ter uma relação diferenciada com a tecnologia depois desta quarentena, e para as empresas será um desafio a adaptar-se. Mas o que muda exatamente?
Tecnologia para pagamentos: será o fim do dinheiro em espécie?
O dinheiro, em espécie, tem contribuído a disseminar o vírus. Um porta-voz da OMS sugeriu que as pessoas utilizassem mais formas digitais para realizarem pagamentos. Por causa disso, pagamentos via QR Code e aplicativos ganharão mais adeptos nos próximos meses.
As pessoas estão sendo obrigadas a aprender a usar a tecnologia neste momento, mas elas perceberão que isso pode facilitar o cotidiano. Vamos nos acostumar a terminar o dia de trabalho e “sair do escritório” apenas deixando um quarto, passando pela porta. Por conta da crise, precisamos aprender como trabalhar colaborativamente de forma remota. As pessoas estão usando a tecnologia para fazer coisas que faziam da forma antiga, com presença física.
Quando voltarmos à normalidade, muitos irão questionar-se por que precisam gastar tempo fazendo fisicamente algo que podem fazer remotamente? É possível usar com outras coisas o tempo economizado, como tratar dos cuidados pessoais, ficar com pessoas queridas, descansar, estudar, divertir-se, executar qualquer atividade que seja mais agradável que o tempo de deslocamento para o trabalho.
Com relação ao dinheiro, o uso de tecnologias como o QR Code ou aplicativos de pagamentos, também conhecidos de wallets ou ‘carteiras virtuais’, amadurecerá. Neste momento ocorrendo de forma “forçada” esse uso vai amadurecer e muitas pessoas enxergarão, além da praticidade, também segurança. Afinal, você não carrega consigo o dinheiro, mas consegue acessar a funcionalidade do dinheiro por meio de autorizações e da tecnologia.
Outro ponto a destacar: o dinheiro virtual elimina o anonimato do dinheiro em espécie, o que torna a economia mais controlável. Até mesmo as criptomoedas não permitem o total anonimato, como têm revelado pesquisas atuais. Além disso, reduz-se o espaço para a criminalidade física (não que o cibercrime seja menos efetivo). Deixar de usar dinheiro em espécie não é apenas uma questão de conveniência, mas principalmente de segurança pessoal.
O crescimento do mercado de pedidos virtuais
Com menos pessoas nas ruas, mais compras e pedidos virtuais serão feitos. A partir disso, estima-se o crescimento do mercado dos países nos próximos meses.
Anualmente a FEBRABAN, em parceria com uma grande consultoria, elabora e publica um estudo sobre a Tecnologia Bancária¹. Em 2019 houve o aumento significativo de transações financeiras (pagamentos de contas e transferências de valores) por meio de mobile banking realizadas pelos brasileiros. Esse fato é importante, pois o “banco” é algo muito presente na vida das pessoas e mostra que elas passaram a adotar o celular para acesso e movimentação de suas contas bancárias.
Confiar em “usar” o dinheiro pelos aplicativos de celular pode ser encarado como um primeiro passo para que o consumidor adote essa tecnologia e passe a utilizar cada vez mais novos aplicativos em atividades do seu cotidiano (comprar roupas, supermercado, farmácia e pratos em restaurantes). Um estudo² publicado no início de fevereiro de 2020 apresentou que o número total de pedidos realizados no e-commerce em 2019 foi da ordem de 178,5 milhões de pedidos, gerando um faturamento total de R$75,1 bi. O mesmo estudo estimou um aumento de 21% no faturamento do e-commerce brasileiro para 2020, podendo gerar R$90,7 bilhões em faturamento para as empresas.
Do total de 2019, ainda pelo mesmo estudo, as compras na categoria de Alimentos e Bebidas representaram 1,6% do número de pedidos (aproximadamente 2,85 milhões de pedidos) e 1,1% do faturamento (aproximadamente R$826 milhões). As categorias campeãs em número de pedidos realizados em 2019 foram: “Moda e Acessórios – 21%”, “Entretenimento (livros, DVDs, jogos etc.) – 15%, “Beleza, Perfumaria e Saúde – 12,5%” e “Artigos para casa – 8%”. Os números mostram que as pessoas compram de forma online itens de uso particular ou privado com muito mais frequência do que compram Alimentos e Bebidas.
Aplicativos de comida serão somente a ponta do iceberg
Há possíveis explicações para este fenômeno. Talvez uma refeição envolva muito mais do que a “simples” compra do produto. Uma refeição é muitas vezes um momento de encontro de amigos, familiares, colegas do trabalho e esse encontro não ocorre no meio digital. Porém, com as restrições de movimentação e aglomeração de pessoas, isso certamente irá modificar-se. Aqueles que não quiserem ser chef du cuisine, preparando em casa suas refeições, irão em parte recorrer aos aplicativos e pedidos virtuais.
Neste momento é possível aplicar o mesmo raciocínio da resposta anterior: as pessoas passarão a utilizar e a se familiarizar com os aplicativos de compras e pedidos virtuais. Depois disso, rapidamente perceberão que podem utilizar os mesmos aplicativos para qualquer outro produto, não apenas à refeição. Os aplicativos hoje oferecem serviços dos mais variados. Veja o Rappi: além de pedidos e entrega de restaurantes, oferece também o serviço para inúmeros tipos de lojas de comércio. Esse mercado irá crescer nos próximos meses: no mínimo dobrar de tamanho. Além disso, outros aplicativos vão se “beneficiar” com o vírus.
Existe todo um ecossistema de pedidos e compras virtuais. São entregadores, equipamentos que os entregadores usam (motos, bicicletas, patinetes, carros), empresas de embalagem. Ainda temos os que oferecem serviços de armazenamento e separação de produtos, entre muitas outras organizações. Certamente a demanda dessas empresas irá aumentar, novas oportunidades de negócios B2B e B2C aparecerão, e novos modelos de negócios serão criados.
Outro ponto importante é o fato de o dinheiro virtual reduzir o custo das transferências bancárias e eliminar barreiras geográficas, além de aumentar a segurança e rastreabilidade das transações comerciais. Em 2019, o BACEN definiu as regras para o OpenBanking no Brasil, o que tem permitido o surgimento de muitos novos modelos de negócios e de empresas.
Tecnologia de comunicação e empreendedorismo pós-crise
Do lado da comunicação, aplicativos como WhatsApp e Telegram também podem crescer. Nos sites e até mesmo nas lojas físicas, muitos acessórios como webcams começam a se esgotar. As pessoas já estão se preparando para a comunicação e trabalho a distância. Se não quiserem perder seus clientes, as empresas terão de descobrir como manter contato com eles de forma não invasiva, afinal, ninguém aguenta mais “spam”.
Os aplicativos serão uma forma de prestação de serviços das empresas em tempos de quarentena. Aplicativos como WhatsApp e Telegram permitem uma comunicação imediata e automatizada entre empresas e clientes. Com o uso de Inteligência Artificial e chatbots, as empresas poderão rapidamente atender os clientes e resolver os problemas mais comuns ou mais simples. Essa agilidade será fundamental para que o cliente “não perca a paciência” com a empresa. Com todo mundo em casa por muitos dias, tudo deve ser perfeito. Qualquer faísca pode tornar a situação muito mais complicada do que já é atualmente.
É importante ficar atento ao fato de a grande oferta de alternativas do mercado leva a uma redução da fidelização de clientes. Por isso, a disputa pela manutenção do cliente passará por oferecer cada vez mais uma boa experiência de compra e prestação de serviço. Não basta a tecnologia, é necessário saber usá-la.
Os empreendedores poderão se relacionar com os clientes oferecendo uma boa experiência, e o digital será fundamental nesse processo. A resposta no contato digital deverá ser rápida, quase imediata, como seria no contato presencial/físico. Os empreendedores que enxergarem isso sairão na frente e poderão conquistar um maior número de “fiéis”.
A tendência da sociedade pós-moderna é enfatizar cada vez menos a propriedade de bens e substituí-la pela “experiência”. Aquilo que chamamos de customer success é uma atividade nova que será crucial para as empresas.
Impactos sobre planejamento logístico
A questão logística, de entrega de refeições, produtos básicos e mercadorias, também sofrerá impacto. Os fabricantes e fornecedores de produtos básicos e mercadorias têm constantemente declarado que a produção e as entregas não serão afetadas. As plantas industriais continuam operando normalmente, com segurança e fiscalização aumentada com o objetivo de prevenir e proteger seus colaboradores de contaminação. Se partirmos da premissa de que fabricantes e fornecedores conseguirão manter a oferta de produtos e mercadorias para atender a demanda, é possível dizer que teremos impactos positivos e negativos na ponta final da cadeia (entre o comércio e cliente final).
Destacamos como impactos positivos as entregas mais rápidas e ágeis. Com as ruas mais livres, sem tráfego, os entregadores chegam muito mais rápido ao destino, não importa se de moto, bicicleta, carros ou furgões. Outro ponto que podemos analisar será o fato de a eliminação do dinheiro em espécie reduzir o risco (ser vítima de roubo) para o entregador ou a necessidade de troco. Além disso, facilita a criação de uma indústria de logística de entrega e prestação de serviços descentralizada e abrangente. É o caso do Rappi, do Ifood, e muitos outros que atendem a múltiplos fornecedores dispersos geograficamente.
Quanto ao impacto negativo, será que teremos entregadores suficientes para o aumento da demanda? Será que as empresas que vendem para os clientes finais darão conta do aumento significativo de pedidos para entrega? E, quando a vida voltar ao normal, com trânsito nas ruas, os clientes aceitarão que os serviços voltem ao “tempo de entrega” de antes? Ou será que vamos exigir que as empresas mantenham o “tempo de entrega” mais curto?
Empresas de tecnologia têm uma oportunidade
Evidentemente que é difícil de falar em ganhos e perdas quando milhares – ou milhões – de vidas estão em riscos. Entretanto, as empresas digitais e as que têm a tecnologia como foco talvez possam minimizar suas perdas e enxergarem na crise uma oportunidade.
Ameaças também surgem neste cenário. As empresas com base tecnológica serão as mais criticadas se não conseguirem atender com perfeição o cliente neste momento. A demanda pelos serviços digitais vai apresentar um crescimento exponencial. Por exemplo, de uma demanda de 10 mil transações por hora, a demanda pode saltar para 100 mil ou 1 milhão de transações por hora. Em geral, as empresas digitais “vendem” que estão prontas para isso, mas a realidade pode ser muito diferente. Se uma solução ou serviço digital não for projetado para sustentar esse aumento exponencial em espaço de tempo tão curto, cairá em descrédito. Aquelas, porém, que realmente estiverem preparadas e estruturadas para esse aumento exponencial, serão agraciadas – sem dúvida – pelos clientes e por seus parceiros comerciais.
O coronavírus vai, de alguma forma, acelerar a transformação digital nas empresas. E mais do que acelerar, vai deixar muito claro que existem princípios e formas recomendadas para a transformação digital das empresas. O caminho comum é a sequência de digitalização, digitização e a transformação digital por completo. As empresas que estão na etapa da digitização certamente vão “perder” para as empresas que já conseguiram passar pela transformação digital. As empresas que estão na digitalização correm um sério risco de sucumbirem. Este momento vai diferenciar empresas que estão “fazendo” a transformação digital da forma correta, daquelas que “pensam” ou “dizem” que estão fazendo a transformação digital. E isso vai ficar claro nos resultados financeiros e na variação do número de clientes delas.
Fontes
¹https://portal.febraban.org.br/pagina/3106/48/pt-br/pesquisa
²NeoTrust | Compre&Confie | E-commerce Brasil – RELATÓRIO NEOTRUST, 2ª edição.